sábado, 28 de novembro de 2015

Fome

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Dos rostos mais feios da espécie que nos devora,
É a vergonha mastigada por uma adefagia doente,
Uma fome alimentada com a maldade de muita gente,
Diferente fartura de Espírito, alimento das almas de outrora,
A mesma fartura em falta da fria humanidade que já não chora,
Chorando solidariedade hipócrita na exposta miséria conveniente,
Sedutor donativo depositado para abastados vencimentos na hora,
Herdadas contas insaciáveis de candidaturas legítimas a presidente,
Prometida manteiga a derreter no ougado pão que à boca demora,
É tudo isso calor do momento que a fresca esperança não melhora;
Estando a mesa de reis garantida, esquece o rei seu povo indigente,
Continuando o resignado castigo de um comido povo imprudente,
    Avesso virado no interior de anorética moda disfarçada por fora!...

Rei dos espermatozoides mais fracos,
Impunha sua lei de ejaculações contidas,
Estrangulando inatingíveis orgasmos velhacos,
Com a verga amolecida por desidratados buracos,
E simulava falsas palpitações de farturas fingidas,
Como se nadassem em prazer pelo prazer nutridas,
Mas tudo se foi desmoronando em orgânicos cacos,
Quando muita da fome encoberta por olhos opacos,
Revelou dispensas vazias de fertilidade desprovidas,
Restando um forte bafio exalado de esquálidos nacos,
    Herdeiro possível de escondidas migalhas perdidas!...

Gratos pelo fundo migado da lambida tigela,
Mimos empedernidos cavam salgados granitos,
Matando a fome com a sede mortal dos malditos,
Cozinhando vómitos com as migas que o medo martela,
Mas são deliciosas as migas guardadas pelo Amor bendito,
De pais sacrificados na luta contra a fome que filhos flagela,
    Trabalhando os calos ásperos de ódio por salário magricela!...

Sobre o caruncho dos ossos de mesas quebradas,
Sentam-se costas de cadeiras coladas ao abdome,
Esperando o bolor esquecido em pratos sem nome,
Enquanto à farta vergonha de lágrimas esfomeadas,
Se junta a seca penúria de alcunhas envergonhadas,
    Alimentando o choro com tristes lágrimas de fome!...

Atentados à pobreza são pagos em instituições de caridade,
Com a caridade dos pobres servida à mesa pelo pobre cicerone,
     Repastos de pobreza cozinhada na inópia da mirrada solidariedade!...
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sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Ironia do Zé Ninguém

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Como sofria aquele Zé Ninguém!...
De olhar caído nos subúrbios de Deus,
Pendia dos cílios de uma solitária mãe,
Adormecida no sonho de ser alguém,
   Amplexo comprimido dos olhos seus!...

Deixando afogar-se em remoinhos salgados,
Sentia o oxigénio fugir na frialdade dos castigos,
Que emergiam na superfície os oculares abrigos,
Escondidos na dor da retina de olhares segregados,
Quase cegos pela sobrevivência dos amores antigos,
Afogados na separação das lágrimas de olhos amigos,
     Pelo transbordo incerto de opostos ângulos cruzados!...
Como sofria aquele Zé Ninguém!...
Entre sulcos de rugas inertes dos rostos abandonados,
    E os raros cabelos grisalhos, penitentes de cabelos caídos!...

Possuídos por espíritos em agonia,
Despidos da luz de muita alma dilacerada,
Rasgou-se a lâmina atrás da pálpebra suturada,
Pelas vacilantes tentativas da suicida travessia,
Dos caminhos sem saída, empedrados de nostalgia,
     Esses atalhos resignados de tristeza consumada!...
Como sofria aquele Zé Ninguém!...
Pelos extenuados olhos tristes cheios de nada,
    Espelhos embaciados por esquálida melancolia!...

Corpos moribundos arrastavam-se no negrume da tristeza,
Esgadanhavam ténues memórias de punitivas loucuras carnais,
Onde carpiam desabafos abafados às lágrimas de sua fraqueza,
E ali definhavam as almas abandonadas à verdadeira crueza,
     De corpos irreconhecíveis na humanidade de trapos imorais!...
Como sofria aquele Zé Ninguém!...
Ao ver aqueles pecados vivos transformarem-se em mortais,
    Enterrando a felicidade viva, na sombra morta da beleza!...

Ninguém amava o amor que o amava,
Fazia amor com o amor que amor com ele fazia,
Lambiam mel sem fim que dos seus corpos escorria,
Entre orgasmos intensos do prazer que os abraçava,
E os pecados simultâneos que a felicidade defendia,
Perdoados por Deus que suas almas não julgava,
     Pelo prazer do Amor recíproco que Ele protegia!...

Afirmam ser um pecado mortal de alguém,
Mais de mil anos de prazer e Amor imenso,
Do Amor fiel e o libertador orgasmo intenso,
Almas abandonadas que olham com desdém,
     O respeito pelo Amor e aplicado bom senso!...

Como sofriam todos aqueles,
Os que sofriam sentindo-se alguém,
    Cheios de todos quanto os cheios deles…
E como sorria aquele Zé Ninguém,
     Como ninguém, sorria por eles!...
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quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Rebusco

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No final das vindimas,
Já não corre à solta o riso patusco,
Nem se recorta o gesto das pantominas,
Na sombra da luz das velhas lamparinas,
Que iluminavam as estórias do rebusco,
Combinadas com as tesouras traquinas,
Desafiadas pelo cacho mais robusto!...

Um ancião com estórias infinitas no olhar,
Falava aos gaiatos que o ficavam a contemplar,
Atentos às sábias palavras que sempre trazia consigo,
-Filhos, não esqueçam o que em boa verdade vos digo,
Nem respiravam, os petizes, para o ouvir falar,
-É importante haver alguém em quem confiar,
Para que não haja necessidade de procurar o respigo,
     Que no fim da vindima, os vossos filhos vêm rebuscar!...

Há três bagos escondidos atrás da folha da videira,
Aguardando o filho de quem os ajudou a esconder,
Há vinhas ocultas cultivadas por ignorante cegueira,
Abandonadas na sombra vindimada da culpa solteira,
Amantes de misteriosas sombras que ficaram a dever,
A Luz solar nas encostas de costas deitadas na asneira,
Deixando que videiras sem memória ficassem a arder,
Entre obscuros bardos de cachos parados de crescer,
Quando as cepas vivas foram queimadas na fogueira,
    Dos cheques inflamáveis que ninguém quis deter!...

Há um provecto a deixar escorrer um sorriso,
Quando afaga a escola retomada da necessidade,
Há ainda outro velho sábio com um sentido preciso,
Protegendo três bagos no olhar de um gaiato indeciso,
     Entre o respigo perdido e o renascido rebusco na vontade!...

Um moço vivaço com a luz de um candeeiro reflectido no olhar,
Conta estórias sobre três bagos maduros de vaidade,
    Que muitas famílias ajudaram a sustentar!...
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domingo, 1 de novembro de 2015

"Cuspo na Tua Sepultura"

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Nesta terra com que te enterrei,
Terra onde não há vida nem apreço,
É a terra que me deste e eu escavei,
É só tua a terra que da cova eu tirei,
Terra que por ser tua não mereço,
E por ser tão tua, tua terra te dei,
    Terra que eu não esqueço!...

São teus ódios, agora, de terra
Nesse coração de terra infecunda,
Onde minhas mágoas foram enterradas,
Com a terra de tuas suspeições infundadas,
    De onde nasceu minha felicidade profunda!...

Trago as cicatrizes profundas que me deixaste,
Na alma que, sem tu saberes, Deus me deu,
Trago-te a terra que para mim compraste,
Nada quero do que comigo gastaste,
Com todo o desprezo que era teu,
    Tão teu que, com o meu ficaste!...

Só não te trago paz, meu amor,
Deste céu para o inferno onde estás,
Todos os dias desenterraste a triste dor,
    Desta que todos os dias terra te trás!...
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